A vida de seu Apolinásio era tranqüila, como só a
podem ter os moradores da zona rural. Em seu pequeno sítio, além da plantação
de mandioca e de umas poucas hortaliças que eram à base de seu sustento, havia
um pequeno galinheiro. Não era muito, mas, bastava a sua família. Ele, viúvo já
há alguns anos, um filho de nove a dez anos e uma agregada, senhora de seus
cinqüenta anos, que o ajudava a criar o filho e a cuidar da casa de três ou
quatro peças. O banheiro ficava do lado de fora.
Um
dia, quando uma nova ninhada corria alegre pelo terreiro, Gu, como era
conhecido e chamado o pequeno Gumercindo, afeiçoara-se a um pintinho e começou
a tratá-lo com especial cuidado. Nascia assim, Quindim, franzino a princípio,
porém, cuidado por Gu, crescia a olhos vistos.
Certa
vez, Apolinásio, alimentando sua criação, notara que o frangote tinha ares de
superioridade e não perdia nenhuma disputa; até mesmo Cocó, galo chefe e senhor
de seus patrícios, não ousava duelar com Quindim.
Na
roda de amigos, não se falava em outra coisa. Quindim era todo o cuidado
daqueles que se encontravam na venda de Gervásio para um longo trago de pinga
após uma semana dura de trabalho. É ali, naquele trololó solto e mole, que
Gervásio, também criador de galinhas, propõe uma disputa: uma garrafa de pinga.
Lutariam Quindim e Rércules, galo de boas proporções e tido como bom de briga.
Apolinásio entristeceu, o galo era do filho. Gervásio, então, propôs o consolo
definitivo. Se Quindim ganhasse, levaria a pinga e uma bola, aquelas de
borracha fraca, para Gu; se perdesse, só pagaria a pinga.
Na
outra semana, reunidos os astros da tarde de gala e mais os assíduos
espectadores, deu-se o grande embate. Quindim nem deu chance para Rércules,
dois ou três golpes e Rércules ficou estirado no terreiro. Não por muito tempo.
Gervásio o amparou com solenidade e o entregou a cozinheira. Rei deposto, rei
morto, disse ele sem entender o sentido de tais palavras.
Gu,
sem saber do ocorrido, ficou felicíssimo com a bola que tratou de furar no primeiro
chute que deu. Errou o alvo, acertou a cerca de arame farpado. O pai o consolou
prometendo outra bola no final de semana e esta deveria ser de couro. Quindim
tinha nova luta, duas garrafas de pinga. Mas, Apolinásio bateria o pé e
exigiria a bola para o real proprietário do galo.
Nova
vitória de Quindim. Colocou a nocaute o galo adversário no quarto ou quinto
golpe. Sua fama crescia e, em pouco tempo, Quindim, o campeão, como agora era
chamado, tornou-se a sensação da venda de Gervásio. Todos os sitiantes da
região lá corriam para desafiar ou assistir a mais uma vitória implacável de
Quindim. Gervásio, cada vez mais feliz com seu protegido, era agora o
organizador de todas as lutas, vendia como nunca. Todos ganhavam. Quindim, Gu,
Apolinásio e ele, principalmente, e isso é que interessava. Tempos depois, um
rico fazendeiro da região, Dr. Fernando Gouveia de Castro e Silva, surge com
seu galo Rá. Disseram que era o nome de um antigo deus do Egito, mas, ninguém
sabia quem era esse tal de Egito. Apolinásio ficara apreensivo, todos que lá
iam, lá iam em suas carroças puxadas por burros ou a pé, como era mais comum. E
chega esse Senhor Doutor Fernando Gouveia de Castro e Silva em sua caminhonete
importada. Ninguém da venda sabia se era importada, mas, como o último carro
que viram por ali era um corcel 74 que, às vezes, abastecia a venda, ninguém
duvidou que aquele monstro de quatro rodas só poderia vir do estrangeiro.
-
E se ele quiser apostar alto, comentava Apolinásio a Gervásio, seu
agora, patrocinador.
Suas apostas se limitavam as pingas, um pouco de
farinha, um brinquedo ou outro para Gu; algo além disso, não teria como
apostar.
Gervásio,
conciliador, dizia para que ele não se preocupasse, cobriria a aposta e, se por
uma infelicidade do destino, Quindim, ganhador de tantas lutas, viesse a
perder, eles, amigos, companheiros, compadres, fariam o negócio em pequenas
prestações a perder de vista e os olhos da cara.
Apolinásio
confiava muito em Gervásio e por isso foram ver o que pretendia o
Excelentíssimo Senhor Doutor Fernando Gouveia de Castro e Silva.
-
Mil Reais?! Exclamava Apolinásio sem nem saber quanto isso significava.
Os
amigos atenderam prontamente. Eu dou 10, eu dou 15, depois, Quindim não perde,
se perder a gente acerta quando puder.
Gervásio
empenhou palavra e mercadorias. Gouveia, Gouveinha, como já era tratado pelos
invencíveis fãs de Quindim, não se opôs, mil reais em dinheiro contra
mercadorias e alguns contos de reis.
No
primeiro round, os lutadores apenas se analisaram, ninguém nada fez. No
segundo, poucos golpes, sem grandes comoções. A luta se estendeu além de seu
habitual. Gouveia ou Gouveinha torcia o nariz a temer o pior, mas, Rá
mantinha-se de pé e a distância. Os patrocinadores de Quindim tinham um sorriso
amarelo de satisfação. Expectativa, suores, murmúrios e sobrevêm o embate
final. Após graves e ferozes bicadas, asas batendo, esporas ferindo, caem os
dois galos por terra. Ninguém diz uma palavra. Todos estão boquiabertos.
Olhares atentos. Ninguém pisca apesar do suor que escorre pelos olhos de cada
um dos... Uma asa balança. É Quindim. Sorrisos largos de satisfação. Quindim
estanca. Rá, tonto como um bêbado no final da tarde, cambaleando, põe-se de pé.
Como um cachorro fiel a seu dono, vacila, caminha, cai, mas chega próximo ao dono,
aos pés do dono onde descansa. Rá é o vencedor.
Apolinásio,
decretada a derrota de Quindim, o recolhe com uma grande tristeza no olhar.
Quindim está vivo. Muito machucado. Vivo. Ferido em seu orgulho de galo brigão.
Vivo.
Apolinásio
assina os papéis de compromisso de dívida com os amigos, amarrota uma amarga
caderneta com Gervásio, onde inclui um tratorzinho de plástico barato para Gu e
vai embora triste, sozinho com seu galo no colo.
Em
casa, depois de analisar os ferimentos de Quindim – Rei deposto, rei morto! –
entrega a Felizbertina o prato principal do jantar: Arroz, Quindim, ovos e
mandioca.
Gu
brinca com o tratorzinho de plástico no terreiro enquanto espera a hora de
jantar.