quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O vendedor de sonhos

I

Em toda grande cidade existem ruas de pouco movimento, pouquíssimo movimento; verdadeiras ruelas com casebres se desmanchando ao sabor do tempo.
É em uma dessas ruas que se encontra o vendedor de sonhos. Uma casinha sem janelas e que a porta dá direto para a rua. É ali, rente à porta, que ele se senta atrás de uma banqueta tão velha quanto ele, com uma plaqueta carcomida com os dizeres: Vendem-se sonhos. A tinta está tão desgastada que é preciso apertar os olhos para conseguir ler. Mas, isso somente para quem não tem sonhos e não quer comprá-los.
Eu que sou andarilho por natureza, percebi a banqueta e fui conversar com o velho de longas barbas, cabelos desgrenhados, com uma túnica marrom a cobrir-lhe o corpo. Cumprimentei-o e ele não deixou escapar um monossílabo. Perguntei que tipo de sonhos ele vendia, uma vez que não havia mostruário. Ele simplesmente me disse que os sonhos eram de responsabilidade daqueles que o procuravam. Sem entender o que ele dissera, perguntei, então, que tipo de sonho ele me venderia, ao que ele respondeu que eu não tinha sonhos. Ainda mais confuso e percebendo que ele não era de conversa, afastei-me.
Há poucos metros dali, havia um barzinho, desses que não inspiram confiança a ninguém, mas que tinha mesas dispostas na calçada, ponto estratégico para minha observação. Sentei, pedi qualquer coisa e fiquei algumas horas a observar o vendedor de sonhos que em nenhum instante mudara de posição.
Perguntei ao dono do bar se ele conhecia o vendedor e ele me disse que não, que aquele senhor mudara-se havia poucos dias e que nunca saía de casa.
Voltei para casa intrigado, mas disposto a voltar lá no dia seguinte e quantos outros fossem necessários para descobrir se alguém compraria algum sonho daquele estranho senhor.

II

Passaram-se dias até que percebi um rapaz, vinte e poucos anos, muito abatido, se aproximar da banqueta. Conversaram por alguns minutos e o vendedor mandou que ele abaixasse a cabeça em sua direção, tocou a testa do rapaz com o dedo indicador e esperou. Alguns segundos depois, o rapaz parecia outra pessoa. Estava um tanto desnorteado, mas pegou da carteira para pagar o homem que o transformara, porém foi inútil. O Velho o repreendeu e não aceitou nada. O rapaz seguiu e após essa negociação, se é que houve, o estranho senhor recolheu a banqueta e trancou-se dentro de casa. Isso devia ser por volta das três horas da tarde. Em minha cabeça, que já não é das melhores, instalou-se o caos.
Passaram-se seis dias até que ele reassumisse o posto.
Eu precisava de um sonho, eu tinha que ter um sonho. Depois de muito pensar, descobri um, guardado no fundo da memória, sonho de infância que a vida adulta apagara.

III

Quando me aproximei, o vendedor de sonhos me olhou com interesse, porém sua única reação foi com os olhos. Não disse uma palavra. Eu, ali, parado à sua frente, ansioso, tremendo, esperando que ele dissesse alguma coisa e ele não se movia, apenas me olhava. Não sei quanto tempo se passou, mas criei coragem e perguntei:
- Então, quanto custa o meu sonho?
- Quanto você quer pagar por ele? Respondeu-me somente com um mover de lábios.
Não entendi a pergunta, mas disse, envolvido na inexperiência de comprador e na ingenuidade do sonhador, que pagaria o quanto e o que ele quisesse. Creio ter visto nessa hora esboçar-se um sorriso em seu rosto.
Sua voz, que era fraca e sumida, desapareceu por completo e não entendi nada do que ele me disse em seguida. Contudo, como se estivesse ouvindo, aceitei tudo sem questionar, afinal, eu não sabia o que questionar.
Mandou que eu me curvasse em sua direção e então, fez comigo o mesmo que fizera com o rapaz. Tocou-me com o dedo indicador na testa e...

IV

Quando abri os olhos, tudo era diferente, não estava mais no mesmo lugar. As ruas eram largas, asfaltadas, sinalizadas. Por toda a minha volta, havia casas de primeira ordem, verdadeiros palacetes. Tudo muito colorido e com uma vida que eu não conseguia atinar. Eu estava feliz, feliz como nunca me lembrara de ter sido.
Olhei para o vendedor, um rapaz que aparentava uns vinte e cinco anos, sabia que tinha que pagá-lo, só não me lembrava por quê. Quando peguei da carteira, ele rapidamente repreendeu-me o gesto. Não entendi nem a repreensão nem minha ação. Estava diante de alguém que aparentemente tinha me perguntado alguma coisa, não sei, não me recordo. Dei alguns passos e dei de cara com o carro que me esperava. Entrei e mandei que seguisse para o hotel. Que hotel? Eu ainda não sabia.
Na recepção do hotel, fui tratado por doutor. Quando lhe pedi a chave do apartamento, fui informado que minha esposa havia chegado e estava à minha espera. Não lembrava de ser casado, mesmo assim, subi ansiosamente. Tanto que o elevador pareceu levar horas até o meu andar.
Entrei e ouvi uma voz doce e melodiosa vinda do banheiro perguntando:
- É você, meu amor?
Automaticamente respondi que sim e fui até o banheiro. Fui convidado a entrar na banheira junto com aquela mulher loira, linda, de quem eu já vira o rosto – não me lembrava onde – e que eu sabia que era minha. Sem saber como ou por quê, disse-lhe que não podia me demorar, tinha uma reunião em poucos minutos.

V

Nada mais é digno de nota. Minhas lembranças se fundiram à do mega-empresário que eu era. Reuniões, festas, jantares... Tudo o que o dinheiro podia comprar eu tinha. Não era apenas casado, tinha amantes, várias amantes que eu presenteava com jóias, carros, com o que elas me pedissem. Mesmo assim, sentia que amava minha esposa, mas o jogo é o que realmente me interessava.
Os dias iam se sucedendo e eu viajava tanto que nem me lembrava mais onde morava. Estava sempre em um hotel diferente, sempre resolvendo questões que envolviam milhões ou bilhões.
Até que, saindo de uma loja, onde acabara de comprar um belo solitário para a mulher com quem passara a última noite, quase derrubei um menino que corria em minha direção. Seus traços me eram familiares, muito familiares. Ele me entregou um bilhete e desapareceu na multidão.
“Teu sonho acaba a meia-noite.”
Intrigado e sem entender nada, enfiei o bilhete no bolso e segui. Para onde? Eu não tinha idéia.
Após horas de caminhada, consultei meus bolsos e vi que só havia uns trocados. A jóia que eu tinha nas mãos, não passava de bijuteria, algo barato que eu não sabia para quem daria. Estava tonto, precisava deitar.
Entrei num hotel barato e peguei um quarto. O recepcionista me chamava de doutor e estava ricamente vestido contrastando com o ambiente que era sujo, fétido até. Perguntou se eu não queria por aquela jóia no cofre do hotel e eu disse que aquilo não precisava de cofre. Ficaria comigo.
No quarto, tudo era ainda mais estranho. Metade do quarto era de uma beleza extraordinária e a outra parecia um prostíbulo. E eu já tinha estado lá antes. Como? Quando? Eu não sabia.
Lavei meu rosto e vi no espelho um velho, barbas longas, cabelo desgrenhado... Aquele não era eu. Apertei os olhos e vi um menino, aquele que me entregara o bilhete, e ele se parecia muito comigo. Tudo rodava. O que estava acontecendo?
Deitei em minha cama, sabia que ela era minha, só não sabia como ela havia ido parar no quarto de hotel onde eu estava. Tudo era muito confuso. Procurei o relógio – eu tinha um Rolex no pulso – e só encontrei um rádio-relógio na cabeceira da cama. Eram nove horas. Fechei meus olhos e dormi.

VI

Quando acordei, eram onze e meia e nada do que eu tinha visto me parecia real. A casa onde eu estava era simples, parecia que eu morava lá. Os móveis me eram familiares, porém somente de onde eu os observava. Eu não conseguia sair da cama. Meu corpo estava paralisado.
De repente, tudo correu pela minha mente. Meu nascimento, minha infância, minha formatura, meu trabalho num jornal de baixíssima circulação, minha solteirisse, minha boemia, minha vida vazia sem amigos, sem mulheres e sempre com o dinheiro contado, meu isolamento, a morte da mãe, do pai, a falência da família, a tentativa de me reerguer, a traição da única mulher que amei na vida, o sofrimento, o abandono, a falsidade das poucas, pouquíssimas pessoas que conviviam comigo, as dívidas, as estranhas dividas que havia contraído sem nem mesmo saber como ou por que, os sonhos apagados na memória que nunca se realizaram e que eram não um, mas dezenas, enfim... A dor aguda... Eu era só... Não tinha ninguém por mim... E nada mais eu teria... Meu cérebro calou-se... Minha última frase: Meia-noite.
Fechei meus olhos. Senti em minha testa um dedo. Abri os olhos e o vi pela primeira e última vez. Seu rosto era jovem, era o meu rosto que me sorria e me dizia: “adeus”. Automaticamente, peguei da carteira. Repreendido por mim mesmo, saí, peguei um táxi e fui para casa. Estava feliz. Deitei em minha cama e dormi. Minha última frase: “meia-noite”.


Seis dias após a minha morte, o velho vendedor de sonhos abria sua porta um pouco mais rejuvenescido e exibia sua pequena placa, menos carcomida que antes, até que chegasse a hora de se mudar novamente.

3 comentários:

  1. Oii professor! A história é bem legal! Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. O Professor! Muito boa essa história, é muito interessante, continue assim!Parabéns


    Mateus Rondon

    ResponderExcluir
  3. É isso aí professor, o texto ta bom mesmo...que nem eu te ensinei... xD

    ResponderExcluir